sexta-feira, 9 de maio de 2014

Nada foi esquecido

Nada foi esquecido
No fundo da garrafa seca
ainda tomo os goles da nossa cerveja
esquecida no desespero da nudez
e nos silêncio cortante da nossa mudez
Viva, viva, viva!
A distância que nos salvou
da explosão dos sentidos
E nos manteve na elucubração dos significados.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Crônicas da vida de Heitor. O fim da família.

Naquela noite havia duas possibilidades para Heitor: seguir o conselho de sua mãe e sair de casa - e, desse modo, ignorar toda a violência cometida pelo seu pai - ou continuar sob o mesmo teto daquele louco e encarar a fatalidade da sua vida familiar.
Sobre a cama já estavam as roupas, dois livros e o celular, mais utilizado para ouvir música do que fazer ligações. Como não conseguia ponderar acerca da circunstância vivida pegou algumas fotos, talvez olhar imagens dos melhores momentos familiares lhe traria uma alternativa menos cruel  e esperançosa.
As fotos iniciais mostravam sua primeira ida ao clube no qual seu pai era associado. Na melhor captura aparece um garotinho de três anos sentado nas pernas da mãe, que olha para a câmera analógica com um sorriso de solidão. No fundo da foto, quase imperceptível, está o marido com um dos braços na borda da piscina enquanto o outro leva uma latinha de cerveja em direção a boca. A criança, por sua vez, está de braços esticados em direção ao fotógrafo, num gesto de pedido para usar o que na leitura dela é um brinquedo.
Heitor não lembrava de nada daquele dia, mas como lhe contaram, aquela fotografia fora feita pelo seu tio Olavo, por sinal, recordou uma informação muito importante, foi o irmão de seu pai o responsável por todos os registros fotográficos da infância e início da adolescência do sobrinho. Agora já com dezessete anos e com a decisão mais importante da sua vida para tomar, Heitor chorava a morte trágica do tio, afinal, caso ele ainda fosse vivo, Heitor poderia passar uns dias na casa daquele homem escolhido para ser seu pai de coração.
Pegou as fotos e pôs dentro da mochila, também colocou ali os objetos considerados vitais para sua partida. Antes de ir embora passou no quarto da mãe e do pai, ambos tinham sono pesado, principalmente o segundo que sempre estava bêbado. Entrou como um gatuno e encontrou somente sua mãe na cama, era quarta-feira, o dia do pai fazer um tour pelos botecos do bairro. Com passos leves deu um beijo suave na testa da mãezinha, disse algumas palavras desejando sorte e sorrateiramente foi embora do recinto. Descia as escadas a caminho do quintal quando mudou o rumo para a cozinha, era necessário ficar abastecido de alimentos e água, pois o dinheiro era pouco.
Na copa abriu a geladeira recolheu algumas frutas, duas garrafas de água e na dispensa pacotes variados de biscoitos, por fim, ainda comeu o resto do almoço esquecido nas panelas. Barriga forrada e mochila pronta, chegara o momento da despedida, olhou para baixo, fechou os olhos e proferiu dizeres de sorte. Ao abrir as pálpebras notou mais um par de pés além do seu, com a cabeça já alinhada ao pescoço fitou o pior dos semblantes para aquela noite. O pai lançava um olhar de estranhamento e raiva quando perguntou:
- O que estás fazendo? Por que essa mochila? E cade o meu jantar?
- Isso não é nada pai, eu estava apenas preparando minhas coisas para amanhã e comi por causa da fome.
- E eu? ficarei aqui de barriga vazia? Moloque filho da puta! Dar-te-ei uma surra, assim, saberás pensar primeiro no teu pai.
O soco fez sangrar o nariz de Heitor que só não desabou logo no chão porque seu corpo balançou em direção a pia, mas, em seguida, agarrado pelo tronco o rapaz foi lançado ao solo e com o movimento bateu a cabeça na lajota. Estava completamente torpe, sentia somente o peso do pai na altura do estômago. O segundo soco fez seu cérebro chacoalhar e o olho direito ficar no mesmo instante inchado.
- Agora vou tirar o cinto e terminar essa peia para tu nunca mais esqueceres quem manda aqui.
Enquanto tentava tirar o pino da fivela Heitor lembrara dos gritos da mãe nas tantas noites que ela esteve no seu lugar. Heitor nunca fizera nada para ajudar-lá durante as agressões, o medo lhe dominava tanto que seu corpo ficava como uma estátua. O álcool dificultava a retirada do cinto e sem paciência o pai deu um tapa que fez a cabeça girar para o lado oposto, com o olho esquerdo viu uma faca de serra, esticou o braço direito o quanto pode até o cabo ficar seguro em seus dedos e com força enfiou a arma branca na coxa do pai.
- AAARRRGGHHH! FILHA DA PUTA CARALHOOOO!!
No chão aquele homem de trinta e três anos se contorcia e soltava todos os palavrões imagináveis contra Heitor.
- Eu vou te matar! E depois mato tua mãe, aquela vadia que te pariu.
- Não, hoje só existe uma vítima.
Heitor pegou a frigideira com quase vinte e cinco centímetros de diâmetro e deu sucessivos golpes no rosto do pai. Levantou-se com a camisa e braços ensanguentados, observava a face desfigurada com uma sensação de alívio quando ouviu um soluçar fraco, nas escadas com as duas mãos na boca a mãe chorava.
- Acabou, não tem mais razão para chorar. Após um curto silêncio e trocas de olhares Heitor amargamente escutou:
- Vai embora agora!
- Como? Fiz o certo, te protegi.
- Tu não sabes de nada. Eu não suportava as agressividades do teu pai para virares um assassino.
- Eu apenas me defendi, podemos dizer isso para a polícia.
- CALA A BOCA Heitor! Tu achas que, caso fosse minha vontade, já não teria matado teu pai? Quantas noites bêbado ele dormiu ao meu lado sem ter como reagir na oportunidade de ter uma faca cravada nas vísceras. Já tinha dito para ires embora ou aceitares a condição que vivíamos. Tu te tornastes um assassino, vai embora porque eu vou ligar para a polícia.
Heitor correu para fora da casa e durante meia hora entrou e saiu de tantas vielas até ficar sem nenhum norte. Sentou-se na calçada com a mente em nebulosas.
Naquela noite só havia duas possibilidades: dormir para esquecer ou ficar acordado e enlouquecer.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Nas mãos da prostituta.

No coração daquele homem estava presente um passado vivo.
As noites regradas e regadas com bebidas, danças e mulheres pulsava em sua memória e fazia seu quarto ficar cada vez mais sufocante.
Havia um ano a grave doença não lhe permitia sair da cama, entregue aos cuidados de familiares, que tanto desprezou, vivia com agonia, não por conta daquelas companhias, já sem vida para ele, mas pela impossibilidade de estar na sua casa: a rua.
Adiantar sua morte, portanto, era algo encarado como natural, dizia a si mesmo como trocadilho.
O problema era pensar na executora, quais das paixões atenderiam o pedido final do amante?
Pensou na espírita, mas logo lembrou que a sua crença a impediria.
Veio em mente a médica, porém recordou que no último encontro fizeram a promessa de não entrar mais em contato. Foi lamentável lembrar desse fato, afinal, de todas era a mais apta.
A solução estaria na Personal Trainer, pegou o celular e após lhe revelar o plano foi obrigado ouviu:
"Não tenho coragem de ver seu corpo moribundo, prefiro lembrar do perfil atlético que você tinha".
Cansado de elucubrar  ligou para a prostituta. De pronto escutou um sonoro "não".
A prostituta acreditava numa possível cura, contudo, após o homem explicar que no seu caminho a direção já estava curta, foi concedido o desejo.
Antes de receber a injeção fatal o homem deu um grande riso, surpresa, a prostituta perguntou a razão daquela reação: "Tu que de todas é a mais condenada, foi a única capaz de compreender o sentido da minha vida. Além disso, é uma ironia, tu me destes tanto gozo e agora és responsável pelo fim dos meus prazeres"
Antes de cair no "sono eterno" aquele homem ainda teve a felicidade de ouvir dos lábios mais carnudos que já provou: "De fato sou a mulher a qual deves confiar. Pois, somente eu seria capaz de nesse momento te dar um beijo e ao pé do ouvido falar para não veres a morte com dor, mas o prazer final de uma vida boêmia".